terça-feira, 30 de agosto de 2016

Reykjavík Karaoke Bar

Mais insólito pouco possível, ou bem improvável. Havia há pouco adentrado a um bar com karaokê no centro de Reykjavík, com uma turma de mais ou menos uns dez orientais felizes da vida com sua excursão cheia de selfies à terra de Bjork, após presenciar pela primeira vez a aurora boreal. Caso seguisse alguma espécie mais convencional do que habituara a chamar de lógica, aquela não parecia a sequencia natural dos fatos. Talvez parecesse mais razoável que, após presenciar as luzes do norte, a pessoa parasse para digerir o momento, dormir feliz da vida, ou que tivesse um período razoavelmente mais introspectivo do que costuma permitir um bar com karaokê. Mas lá estavam eles, em meio a islandeses bem mais pra lá do que pra cá, tentando ambientar-se, e arrumando coragem para cantar algo.
Em meio às pastinhas com as listas de músicas surgiram duas figuras femininas. Mãe e filha islandesas, grandes e bonitas, a mãe mais do que a filha, em ambos os aspectos. Puxaram papo e ele muito se interessou. Hoje não seria capaz de se lembrar dos temas, mesmo porque para ele aquilo parecia interessante, irreverente e um tanto insólito. Antes mesmo da emergência de qualquer assunto lembra-se que a ideia de levar alguma delas para a cama seria algo muito mais digno de nota nas futuras conversas em bares tupiniquins do que presenciar (como acontecera há poucas horas) umas luzes bruxuleantes no céu, próximas ao círculo polar. Parecia, por algum motivo, que estar tão longe de tudo (da perspectiva não islandesa de “tudo”) facilitava que coisas interessantes, irreverentes e insólitas acontecessem.
Determinado papo furadíssimo irrompeu numa bufada quase retumbante, quando ele disse as suas interlocutoras que pareciam irmãs. “The old trick”, respondeu a mãe, e ele perdeu ali todos os pontos. Ainda num movimento completamente humilhante pediu-lhes uma selfie. Tentava converter seu fracasso sem tamanho num futuro “caça-likes” nas redes sociais e invencionices nas tais futuras conversas de bar. Lembrou-se que há poucas horas tinha achado um despropósito espetacular e um descaso com o “verdadeiro sentido da vida” os orientais e suas sem-número de selfies na vigência da aurora boreal. Não soube concluir se havia equivalência para uma justa comparação, mas não deixou de sentir-se um pouco mais autoderrotado.
Bebericou algumas cervejas cujos preços não permitiriam que ele mesmo se embriagasse (“aqui a única coisa barata é a água”, sempre falavam os honestos islandeses) e, como ele diria depois, “meio que do nada”, quando uma turma mista e muito alegre de malaios e islandeses iniciou “My Way” ao microfone, aproximou-se outra senhora islandesa. Em idade, poderia ser uma mãe. Talvez avó.
- O que é que você vai cantar?
- Não sei, estou pensando em Bee Gees (mentira; estava pensando em Kaoma – “Chorando se foi quem um dia só me fez chorar”, única música brasileira do cardápio - já que naquele instante a noite não parecia reservar nenhuma outra situação icônica – “e por que é que eu perseguia isso?” – muito tempo depois se perguntaria). Talvez “How deep is your love”, o que a senhora acha?
                - Eu acho que se você cantar com confiança, todo mundo vai gostar. Aliás, qualquer coisa que você fizer na vida tende a ser assim. Só não me chame de senhora.
E piscou-lhe.

domingo, 27 de março de 2016

O momento brasileiro e uma grande oportunidade para a medicina

“Se soubesse que algo me seria útil, mas prejudicial a minha família, eu o tiraria da minha mente. Se conhecesse algo que fosse útil à minha família, mas não a pátria, procuraria esquecê-lo. Se conhecesse algo que fosse útil à minha pátria, mas danoso ao gênero humano, eu o consideraria um crime”.
(“Pensamentos” – Montesquieu)

“De todas as coisas existentes algumas estão sob o nosso poder e outras não.
...A realidade do bem está naquilo que está debaixo do seu controle”.
(“A Arte de Viver” – Epicteto)

                Vivemos um momento importante no Brasil. Muitas pessoas estão descontentes com diversas questões de ordem política e social, e vivem a angústia de se imaginarem de mãos atadas, de não conseguirem contribuir para a mudança daquilo com que não concordam. A verdade é que, no fundo, sempre há o que fazer. Para quem tem a intenção profundamente sincera de fazer o bem, nunca faltará lugar. Por vezes a angústia vem das ações possíveis não surtirem uma mudança de amplo alcance, mas há lugar para todos na construção de um país melhor. Num determinado segmento da sociedade, a oportunidade está escancarada. Trata-se da medicina, através da Medicina de Família e Comunidade.
                Sabemos que um dos vários pontos frágeis do sistema é a saúde. O SUS é uma das grandes conquistas sociais do Brasil nas últimas décadas, mas até hoje não alcançou toda a sua potencialidade, dentre outros porque não foi acompanhada por uma adequada oferta de recursos humanos, especialmente médicos, para que ele pudesse se estruturar de maneira eficaz.
                Há muitas décadas a educação médica brasileira volta a formação dos médicos para o ambiente hospitalar, orientados para as especialidades focais (como cardiologia, dermatologia, radiologia) em detrimento da formação generalista. Isso não quer dizer que as estas especialidades não sejam importantes, muito pelo contrário, mas da forma como está organizado, com a quantidade atual de especialistas em cada área, surge um sistema de saúde oneroso e pouco resolutivo.
                Em qualquer país que tenha se proposto a assegurar um sistema de saúde público e universal, e que tenha dado certo, a exemplo de Inglaterra, Canadá e Espanha, é fundamental que ele seja alicerçado numa Atenção Primária a Saúde (APS) forte. É neste cenário que se inserem os Médicos de Família e Comunidade (MFC).
O MFC é um profissional generalista, que acompanhada os indivíduos, suas famílias e a comunidade (por trabalhar sempre com uma população fixa) durante toda a sua trajetória de vida. O MFC tem ampla formação, por isso é capaz de realizar desde consultas de pré-natal, passando pelo tratamento de problemas crônico-degenerativos, infecciosos, emocionais, acompanham o processo de morte, além de fazer alguns procedimentos cirúrgicos, caso o local onde trabalhe forneça condições para tal.
                O MFC não fica somente no consultório, ele também faz visitas domiciliares a pessoas que não possuem condições de ir à Unidade de Saúde, bem como realiza outras atividades em outros espaços da comunidade. Uma das grandes vantagens de acompanhar as pessoas e suas famílias por um longo período é a criação do vínculo. Por acreditar na determinação social como parte do processo saúde-doença das pessoas, ou seja, perceber a influência da relação da pessoa com o ambiente onde vive, onde trabalha, com as pessoas com quem convive e consigo mesmo, o MFC consegue atuar numa esfera que vai muito além da prática clínica.
                Isso exige uma série de competências que passam das habilidades de comunicação a um engajamento sócio-político, para que a figura deste médico não seja apenas um reprodutor do status-quo, onde vê no paciente apenas uma máquina que é consertada e continuar sendo explorada em seu trabalho. Quando consegue transpor esta barreira, o MFC é, dentre as opções postas hoje para quem se gradua em medicina, aquele com maior potencial de transformação social, podendo contribuir, além de tudo, com a formação de sujeitos mais autônomos, mais críticos, com maior capacidade de lutar por si mesmos e por um país melhor.
                Apesar dos esforços feitos recentemente, como a mudança nas diretrizes curriculares dos cursos de medicina e a expansão das vagas de residência em Medicina de Família e Comunidade, há de haver um maior interesse por parte dos médicos e estudantes de medicina de se enveredarem por este caminho.
                Sabemos que são muitos os entraves para essa escolha, dentre os quais o não reconhecimento e valorização pelos pares de profissão, pela família e outros setores da sociedade. Para superar isso, vários outros esforços simultâneos tem de ser feitos, como ampla divulgação em vários veículos midiáticos. (Quem sabe inclusive um Médico de Família como protagonista da novela das oito?).
                Os desafios são grandes, mas está lançado o convite: Médicos e futuros médicos, existe a possibilidade de um papel muito importante, um protagonismo na construção de um SUS melhor, e de um país melhor. Ela se chama Medicina de Família e Comunidade. Vamos nessa? 

Seguidores

Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.