quarta-feira, 16 de novembro de 2011

De onde tiraram a conclusão?

O teatro estava lotado. A peça, “Tio Vânia”, clássico de Tchekov, a preços populares e encenada pela companhia Galpão esgotou rapidamente os ingressos. Eu ocupava um lugar central na fileira K.
Eis que as luzes se apagam e no meio do primeiro diálogo uma velhinha, bem velhinha, daquelas que não convém mais tingir os cabelos brancos, e que ocupava a poltrona imediatamente a minha frente, vira-se para outra velhinha que está ao seu lado e pergunta: “Você tá ouvindo alguma coisa?”. A segunda velhinha responde afirmativamente, no que a primeira completa: “Eu não estou ouvindo nada.”
E o problema era de surdez mesmo, porque não só sua colega como todos nós podíamos ouvir perfeitamente os atores em cena. Fiquei pensando nas alternativas que sobravam para a surda senhora: 1)Leitura labial – impossível, além de exigir algum treino, ela estava na fileira J, e se o ouvido estava naquele estado, não podíamos esperar grandes façanhas visuais. 2)Dar-se por vencida e dedicar-se a elucubrar alguma coisa com seus botões, ou até mesmo tirar uma soneca, ou por fim 3) tentar entender à sua maneira, e com os recursos que lhe sobravam, ou seja, apenas os olhos e a imaginação, a história ali encenada.
Ao que tudo indica a senhora resolveu heróica, ou insanamente tentar entender a história, pois vira e mexe se virava para sua amiga e indagava alguma coisa. “Está chovendo?”, “Ele quer matar o outro?”, “Não tem alegria, nada?”. Não perguntava sem parar, contudo, quando o fazia, era em alto volume, outro sinal clássico de surdez senil, de não conseguir discernir o tom da própria voz. Por isso, e não pela freqüência, lá pelo meio da peça o pessoal nos arredores fazia um SSHHHIIUUU, para ela calar-se.
A história da peça é muito boa, com interpretações a altura. O enredo é simples e direto, com uma mensagem bem clara. Não vou discorrer sobre seu conteúdo aqui, porque há quem já o tenha feito com muito mais propriedade e no fundo, nesta situação em particular, o que mais me interessaria seria saber o que a velhinha tinha entendido daquilo tudo. E se ela tinha gostado ou não.
Qualquer coisa ali seria possível. O mais provável é que ela tenha compreendido o básico do básico, até porque no teatro a expressão corporal também é muito importante e elucidativa, parte fundamental do ofício dos envolvidos. Mas o que eu chamo de básico do básico são apenas fatos, a razão de seus acontecimentos é praticamente indedutível sem o recurso auditivo. Fulano matou ciclano. Por quê? Fulana beijou beltrano e depois ciclano? Por quê. Mariazinha chorou a peça toda. Por quê?
Fulano matou ciclano por que era contratado de Beltrano. Beltrano era casado com fulana, a quem viu sendo beijada por ciclano, que por sua vez era comprometido com Mariazinha, que sabia da infidelidade de seu amor desde o principio e por isso chorava o tempo todo. Hipótese bem razoável, apesar de enrolada no meio de tantos “que”s, mas baseada em quase nada, podendo ser completamente diferente da história real. E não pode ser também assim a própria vida?

Não precisamos nem resgatar o Mito da Caverna; o que quero dizer é inclusive um pouco diferente. Sem muitos rodeios filosóficos sobre o que é real, ou o que é a verdade e admitindo ambos serem apenas conceitos vencidos por maioria de votos, o que nos resta é simplesmente a máxima “Mais importante do que estar certo, é estar feliz.”
Pois quantos indivíduos conhecemos que parecem que passam a vida toda como uma velha surda observando os eventos que permeiam sua existência? Sempre com um entendimento parcial e subutilizando as poucas ferramentas que aprendeu a usar na vida, mal tem a capacidade de revoltar-se, mesmo por não ser capaz de compreender se há motivo para tal.
E agora, pior ainda, quem garante que nós mesmos, um pouco mais lúcidos, “com os sentidos um pouco mais apurados”, embora sem achar muitas das respostas em detrimento de maiores percepções, deveríamos ter esperança de alcançar, nem que por meio das futuras gerações, uma compreensão maior?
De qualquer forma parece não haver caminho melhor. A única via possível e a via das dúvidas. Vai ser trafegando por ela que encontraremos idéias novas, aparentemente resolutivas, tão boas que parecerão ilusórias. Apostaremos todas as fichas nelas, sem saber que foram pensadas por algum tipo de velhinha surda que teve todas as suas conclusões tiradas de uma peça de teatro.

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.