segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Desafinado desaforado

Um dos grandes gênios nacionais está de aniversário. Como tal (e nada mais justo) vai passar vários meses comemorando. Trata-se de João Gilberto, que chegando a respeitáveis 80 anos, fará cinco shows em diferentes cidades brasileiras, e convida seu público a participar dessa festa cobrando simbólicos mil reais pelo convite. Quanta generosidade! Afinal, como se sabe (ou como dizem), saiu pouquíssimas vezes de casa em toda vida. Pois se queremos vê-lo, e ouvi-lo, nada mais justo que desembolsar “milão”.
Alias, passados os oitenta, mesmo contra vontade do mestre, acho prudente os mais chegados fazerem uma visitinha ou outra lá no apartamento do Leblon pra ver se o isolamento continua por conta da rabugice ou se ele não contornou o Cabo da boa Esperança e ninguém se ligou. Vai ser bem desagradável encontrar o pai de um dos maiores orgulhos nacionais (a Bossa Nova) em estado de putrefação porque se acha normal e respeita-se a vontade de um sujeito que prefere não manter contato com outros seres meses a fio.
Pô, eu acho João Gilberto o máximo. Não foi só o pessoal lá do fim dos anos 50 que ficou em estado de transe quando ouviu as primeiras batidas do violão do João tocando Chega de Saudade. Eu fiquei o dia inteiro ouvindo essa música no dia que conheci. Quando comecei a tocar violão me dizia “o dia que eu conseguir tocar Chega de Saudade, não preciso de mais nada”. Esse dia chegou faz algum tempo, ainda preciso de algumas coisas, mas foi uma das sensações mais marcantes de que me lembro.
O cara consegue transformar tudo que toca em obra de arte. Seja Noel, Caetano, Cole Porter e quem mais quiser, ele encaixa na batida que ele mesmo inventou e o negócio fica genial. De quebra (por mais improvável que seja) foi mentor da galera que fez um dos melhores álbuns de música brasileira de todos os tempos, os Novos Baianos. É até compreensível que alguém assim tenha lá algumas excentricidades, mas podia também ser um pouco mais generoso.
Assim como eu, tem milhares de jovens cujos pais nem se conheciam por gente na época que a bossa estourou e que acham o João “Du caralho”. Gente que não tem “um puto” no bolso, come no Restaurante Universitário todo dia, mas daria uma economizada na grana do goró do fim de semana com um sorriso de orelha a orelha pra vê-lo tocar uma vez na vida. Poderíamos economizar, sei lá, cem, até duzentos reais. Mas 500? Mil?
Isso foi um verdadeiro coice. A gente sempre ouve dizer que o João faz questão de silencio absoluto quando se apresenta, encrenca com o som, ar-condicionado, e tudo o que tem direito. Todos que se sujeitam a vê-lo em ação sabem do risco dele abandonar a coisa no meio ou simplesmente não aparecer. Será que ele imagina que se cobrar menos de quinhentos reais vai aparecer muito farofeiro no show, daqueles que não sabe muito bem o que tá acontecendo, vê uma fila e entra, confunde João Gilberto com Gilberto Gil (não que o Gilberto Gil seja ruim), “meio que já ouviu falar” e diz que acha lindo quando ele canta Papel Machê, ou ainda que lá pelas tantas, no meio do show vai gritar “Toca Raul”?
Falta de grana está fora de questão. Apesar de ter seus arroubos a La seu Madruga e dever alguns meses de aluguel, a gente sabe que deu pra fazer um pé de meia nesse meio tempo entre o lançamento do “metade Chega de Saudade, metade Bim-Bom” e o DVD gravado em Tóquio. Além do que, ele nunca foi de gastar fortunas em festanças ou outros artefatos como vários artistas por aí. Que a gente saiba andava de Monza até um tempo atrás, um dos maiores freqüentadores do apê dele é o entregador de pizza. Qual é a do Joãozinho?
Seja lá a razão disso tudo, não dava pra deixar passar. É duro ver minha geração chegando aí “curtindo” esses ritmos do momento. Temos que mostrar que os nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não, como dizia outro dos nossos. Duvido que alguém se lembre do grande sucesso deste ano daqui a uma década. João Gilberto, por sua vez, certamente será lembrado daqui há cem, duzentos anos. Mas não pode ser ele desaforado desse jeito (Mil mangos?!). Caro João, desafinado ou não, teu comportamento é completamente anti-musical.

Seguidores

Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.