segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Projeto Beija-Flor

Pouco antes de entrar na faculdade fui professor voluntário num projeto em que dava aulas para crianças carentes de uma escola pública aqui da zona oeste de São Paulo. O Projeto Beija-Flor (depois explico o nome) funcionava num espaço cedido pela Paróquia São Domingos Sávio, onde alunos de 1ª a 5ª série, selecionados pelos professores devido a problemas de aprendizado, passavam as tardes de segunda à sexta-feira, teoricamente a fim de que rendessem mais nos estudos.
O projeto era composto por pessoas com diversas formações (poucas realmente com alguma formação superior), mas com bom coração e vontade de sobra para ajudar de alguma forma aquelas crianças. A tarefa não era das mais fáceis, entendam o porquê: Pessoas graduadas para dar aula àquelas crianças, que apesar de tudo o que aprenderam (ou deveriam ter aprendido) não conseguem fazer com que elas obtenham desempenho escolar satisfatório, mandam tais crianças para “aulas de reforço” ministradas por pessoas que desconhecem qualquer metodologia pedagógica, sequer para lidar com crianças autodidatas, que dirá com as problemáticas. Soma-se a isso o fato de que criaturas no auge da infância, depois de manhãs intermináveis com lápis e borracha na mão, apareciam no projeto para fazer o apontador trabalhar, e repetir tudo aquilo que se pudessem não teriam feito nem no primeiro turno.

Meus primeiros dias de projeto foram um tanto quanto desanimadores, pois me parecia óbvia a pouca eficácia da coisa. Mas não demorou muito para entender o real intuito daquele projeto.
Todas as crianças eram provenientes de uma favela aqui do bairro. Crianças que desde cedo já são acostumadas a todo tipo de malandragem e entendem o mundo de uma perspectiva bastante ruim. Foi nos primeiros dias que vi uma menininha ensinando a outras que uma pessoa só morre quando fica velha ou “de tiro”.
Fazer com que aquelas crianças ficassem a maior parte do tempo longe deste meio, e tentar de alguma forma, em meio a exercício de tabuada e ditados, exercer alguma influência positiva em suas ações e pensamentos, era uma grande sacada. Ainda mais naquela faixa etária; era como tentar plantar uma semente e regar por um curto espaço de tempo, torcendo para que pudesse vingar por si só depois de algum tempo.

E lá ia eu as terças e sextas-feiras, ajuda-los com os deveres. Volta e meia inventava alguma atividade diferente. Certa vez peguei uma apostila de dinâmicas para crianças e adolescentes, emprestada de um amigo psicólogo e resolvi aplicar uma das que estavam descritas. Reuni-as numa das salas e anunciei “hoje a gente vai fazer um dinâmica”. “Ebaaa!!”, “Ah, tio!! Dinâmica??”. Nenhuma delas tinha qualquer idéia do que se tratava.
Pedi que cada um deles pegasse um papel e nele escreve seus cinco maiores sonhos. Depois disso feito, disse-lhes que cada sonho desses cabia numa maleta, e que todos eles estavam indo viajar, levando tais maletas. No meio do caminho aconteciam quatro diferentes infortúnios, como o aparecimento de um tigre, do qual eles tinham que escapar e carregando aquele tanto de bagagem, não era possível, então tinham que, aos poucos, irem se desfazendo das maletas, contendo os sonhos. No final, restava uma só maleta, um só sonho.
Expliquei-lhes que aquela viagem era uma metáfora da própria vida, que carregamos conosco idéias e planos, os quais muitos, devido os rumos que tomamos, tem de ser deixados para trás, mas que nem por isso deveríamos deixar de sonhar etc. Eles ouviram atentos, e no fim me olhavam com cara de paisagem. Quando eu mal percebia já estava um amarrando o cadarço do tênis do colega na cadeira, outro fabricando um aviãozinho de papel. Obviamente eles não tinham capacidade de abstrair a coisa toda e refletir sobre ela, e no fundo essa nem era a minha intenção. Mas para mim foi bem significativo. Guardo até hoje o papel com os sonhos daqueles que participaram da dinâmica, e agora transcrevo alguns, com os erros gramaticais e ortográficos devidamente corrigidos (em maiúsculas, o sonho que eles carregaram até o fim):

1) Conhecer os Rebeldes (personagens de uma novela da época)
2) Ajudar minha família
3) Que minha irmã arrume um trabalho
4) QUE A MINHA AVÓ MELHORE DO PROBLEMA QUE ELA TEM E FIQUE BOA
5) Comer um prato de macarronada

1) Criar jogos de vídeo-game e ter um também
2) Ter um carro com motor envenenado
3) IR AS ESTRELAS
4) Ser um bom agente
5) Que meu pai construa o quarto de cima

Eram crianças como outras quaisquer. As meninas com o sonho de conhecer os artistas da televisão, os meninos de ter um carro possante; que apesar de viver uma realidade difícil, entendiam o valor da família e sonhavam alcançar o impossível. Eu mesmo pensava que se tivesse a mesma idade, teria alguns deles como melhores amigos.
Houve vezes em que os levei ao parque jogar bola, empinar pipa. A dificuldade que eles tinham na separação silábica transformava-se numa habilidade incomum com a linha e cerol na mão, ou a bola nos pés. Eu ficava orgulhoso quando os via dar “relo” nas outras pipas, até saia correndo pra ajudar a buscá-las onde quer que caíssem.
Isso tudo durou seis meses. Num fim de tarde fui à vizinhança deles a fim de despedir-me. Não sabia ao certo onde era a casa de cada um. Logo que cheguei à rua, dei de cara com dois dos meninos com quem eu me dava melhor. Eles foram me guiando até a casa de cada um.
Foi uma tarefa pesada. Batia de porta em porta, dizia que estava indo morar longe e apesar de imaginar o futuro nada fácil que estava à espera deles, o mundo a oferecer-lhes as piores oportunidades, desejava-lhes toda sorte do mundo, que tudo desse certo.
Quando chegou ao final sobraram aqueles mesmos meninos que me ajudaram a encontrar todas as casas. Repeti para eles o mesmo discurso que disse aos demais, abracei-os e anunciei a partida. Não funcionou. Nem eles, nem eu fizemos qualquer movimento que indicasse que realmente estávamos com intenção de ir embora. Conversávamos mais alguns minutos e repetíamos a mesma ladainha algumas vezes.
Naquele mesmo dia tinha combinado com alguns outros amigos uma despedida numa pizzaria, de forma que eu não podia ficar ali muito tempo. Disse isso a eles, junto com “agora é de verdade, eu to indo embora mesmo”. Um deles encheu os olhos de lágrimas. Abracei-o e mirei o rosto do outro, ele estava sério, e me disse: “Não tio, eu não vou chorar porque eu sei que a gente ainda vai se ver”. E assim procedeu, não derramou uma lágrima sequer. Abracei-o também e parti. Eu também estava com o peito apertado, nó na garganta. Preferi não olhar para trás.
Estava na pizzaria, no meio daquelas disputas antológicas de quem consegue comer mais pedaços, quando meu telefone tocou. Era a mãe do menino que disse que não choraria porque tinha certeza de que nos veríamos novamente. Disse que ele chegou em casa aos prantos. Que ficou um tempão deitado em seu colo, enquanto ela explicava que a vida é assim, que as pessoas vão embora, e eles aos soluços dizendo que entendia, mas não conseguia segurar. Disse-me ainda que só tinha visto seu filho chorando daquele jeito quando o pai dele tinha falecido. Fiquei pensando se tal informação não passava de uma valorização da coisa em si, mas no fundo pouco importava. A gente vai vivendo sem saber muito o que esperar das pessoas com quem encontramos, e sem saber se vai deixar algo de bom para elas. As partidas são parte inevitável da existência, e é muito gostoso lembrar daqueles que deixamos e pensar “valeu a pena”.

O Projeto Beija-flor leva esse nome devido àquela fábula que conta sobre um incêndio numa floresta. Todos os animais correm para escapar do fogo, enquanto apenas o beija-flor segue em sentido contrário. O elefante curioso pára e presta atenção no que faz o beija-flor. Quando entende, indaga-o: “Beija-Flor, pra que você se presta ao trabalho de ir até o rio e pegar apenas uma gota de água e depositar no meio do fogaréu? Não vai adiantar de nada!” E o beija-flor responde: “Estou apenas fazendo minha parte. Quem sabe se cada um fizesse a sua...”

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Cinco filmes, cinco dias, vinte reais

Poucos momentos são tão aborrecidos como os que minha mãe anuncia que vamos ao shopping porque ela e minha irmã vão comprar roupas para mim. Sim, já tenho lá meus vinte e tantos anos e ainda é minha mãe quem escolhe minhas roupas. Nenhuma vergonha quanto a isso, e se dependesse de mim poderia permanecer assim até que fosse chegada a hora de um de nós ir para debaixo da terra.
Sou bem desligado nesses assuntos, quase sempre aprovo o que minha mãe e minha irmã compram. Não faço a menor questão de acompanhá-las em sua peregrinação de loja em loja, nas quais passam horas intermináveis, felizes da vida por escolherem vinte e sete peças de roupa diferentes e na maioria das vezes não levar nada. Sempre que era convecido ou obrigado a ir junto, escolhia a primeira coisa que via pela frente, para indignação e frustração de minha mãe. Não à toa, quando eu era pequeno, um dos pesadelos mais frequentes tinham como cenário aquelas grandes redes de lojas de roupas, tipo a CeA, onde eu invariavelmente me perdia de meus pais e aqueles cabideiros ganhavam vida e passavam a me perseguir pela loja sem fim.

Em contrapartida, há escolhas muito mais agradáveis, como um livro para presentear(-se) ou um filme para alugar. Numa livraria ou locadora sim, posso passar horas a fio e, mimetizando minha mãe, tomar nas mãos e fingir que vou levar vinte e sete itens e muitas vezes levar um, ou nenhum. Ainda por cima sem o contrangimento de ter de passar dezenas de vezes pelo fiscal do provador, que sabe muito bem que as pessoas que realmente intencionam comprar alguma coisa, geralmente não passam por ali mais do que duas ou três vezes.
Houve um tempo em que eu e um dos amigos com quem divido o apartamento em Floripa alugávamos no mínimo um filme por semana, bolamos até um complicado método na seleção dos títulos, mas que sempre terminava com o palpite do Emanuel, funcionário meio gordo, meio japonês, única pessoa realmente confiável naquele lugar. Digo isso porque pessoas como o Emanuel são estremamente raras hoje em dia, o que parece até um paradoxo.
Não sei que critérios os donos de locadoras utilizam para escolher seus funcionários, mas é arriscadíssimo pedir a opinião deles na hora de escolher um filme. É incrível a capacidade que eles tem de juntar falta de bom senso com mau gosto e dar sempre os piores palpites. Houve época em que já quis ser dono de locadora, eu mesmo seria o palpiteiro da clientela. Já cansei de planejar este empreendimento, depois de passar pela fase em que a dúvida era ser bombeiro ou marceneiro.
Em minha imaginação, minha locadora não faria parte de uma grande rede, uma Blockbuster, e sim uma pequena locadora meio mal localizada, mas com o diferencial das boas indicações e por isso muito bem difundida e frequentada, devido ao boca a boca. Claro que eu não poderia trabalhar lá em tempo integral, por isso, inevitável contratar ao menos um funcionário, que passaria por um critério de seleção que iria muito além do 2o grau completo.
"Fulano, o que você sabe sobre Hitchcock? Truffaut e Godard? Gosta dos irmãos Coen? Qual é a melhor atuação do Marlon Brando, em sua opinião? O que pensa sobre Kubrick? E Spielberg? Cite vinte filmes do Woody Allen, eleja seu favorito e justifique. O que sabe sobre cinema nacional? Qual seu filme favorito?"
Talvez a entrevista começasse por essa última pergunta, pouparia tempo. Outro amigo meu contou que certa vez estava numa roda de amigos conversando sobre cinema, cada um dizendo qual era seu filme favorito, quando um sujeito me lança "Debi e Loide". Todo mundo olha com cara de espanto, no que ele se explica "Calma pessoal, me refiro ao Debi e Loide 2 - Quando Debi conheceu Loide". Se um camarada desses entrasse na minha locadora pedindo emprego seria abatido a tiros.
A gente cresce e percebe que essas coisas geralmente não dão muito certo, no náximo eu mesmo seria contratado de uma videolocadora e na melhor das hipóteses seria considerado um novo Emanuel. Infelizmente hoje já não posso mais imaginar que serei bem sucedido em minha profissão a ponto de poder investir na abertura de minha própria locadora. Não por achar que não obterei êxito como médico, mas porque as videolocadoras estão condenadas ao seu fim.

Atualmente não faz o menor sentido pagar oito reais (em média) por um lançamento 24h. É possível baixar filmes da internet com qualidade blue-ray gratuitamente, pratica cada vez mais comum e que faz com que as locadoras aumentem o preço da locação sem qualquer escrúpulo. É o mesmo destino reservado às lojas de cds e qualquer mercadoria que possa ser adquirida pela rede. A venda de tais produtos serão restritos cada vez mais aos colecionadores.
Apesar de também ser usuário do utorrent, sempre que posso prestigio as escassas promoções do tipo "cinco filmes, cinco dias, vinte reais", que ainda existem numa locadora aqui perto da minha casa em São Paulo. Lembro-me de uma das vezes que lá estive; ouvia palpites sóbrios de um funcionário sobre uns filmes do Oliver Stone, quando um grupinho de garotos, de uns onze ou doze anos, se aproximou com murmúrios de "pergunta você", "não, não, pergunta você", até que um deles se aproximou do funcionário e meio sem jeito indagou "Você tem Espantalhos 2?". Achei graça da coisa, imaginei que cenas como essa acontecerão cada vez menos, dada a iminente obsolescência do estabelecimento e, após alguns instantes de pesquisa no sistema, o funcionário volta e diz: "Desculpe, não encontrei, mas temos alguns bons desse gênero em VHS". "Ah! Não, obrigado". Ainda pudemos ouvir quando, imaginando-se longe o suficiente para não ser ouvido, um dos meninos perguntou ao amigo o que era um VHS.
Querendo ou não, há processos e rumos contra os quais não temos muito como lutar. Mas não tenho dúvidas de que, perante a traquinagem de um neto ou apenas para argumentar longevidade, ainda direi: "Sou da época em que se alugava filme em locadora e se copiava mapa em papel vegetal".

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.