sexta-feira, 26 de março de 2010

A primeira sutura a gente nunca esquece

Domingo passado fiz meu primeiro plantão em clínica cirúrgica no Hospital Florianópolis. Desde que resolvi que seria médico, nunca me imaginei como cirurgião e, sinceramente, pensava em não fazer nenhum estágio relacionado à cirurgia até passar pelo internato, quando obrigatoriamente o fazemos.
Objetivando não chegar no internato tendo de assumir que só fiz sutura em ratos e almofadas, e um pouco por curiosidade e pressão externa, resolvi me matricular na matéria optativa “Plantões em clínica cirúrgica no HF”, ou algo assim.
Pois bem, numa ensolarada manhã de domingo, sem nuvens ou vento, perfeita para ir à praia, acordei com uma margem de horário que julgava ser suficiente para me arrumar, pegar dois ônibus e chegar no hospital. Esquecendo-me que se tratava de um domingo, e portanto haveriam no máximo metade dos ônibus circulando pela cidade, cheguei, com o perdão da palavra, com o cú na mão, quase meia hora atrasado ao meu primeiro plantão.
Por uma sorte absurda, eu e minha dupla (fazemos os plantões sempre em duplas de acadêmicos, que acompanham um cirurgião) acompanharíamos o Dr. Edson, um sujeito que se mostraria muito gente boa, e que não reclamou do atraso.
Não havia passado cinco minutos desde a minha chegada, quando apareceu um rapaz com um dos dedos da mão envolto num monte de papel. E lá fomos nós, eu e o Danilo Gebrin, minha dupla, cuidar do caso.

Eu nunca havia feito procedimento algum, mas percebendo que o Danilo era bem sossegado, e tendo a permissão do Dr. Edson para resolver o problema, tomei a frente da situação: “Me diz ai cara, o que foi que você fez? “ Descobri então que ele havia cortado o dedo indicador da mão esquerda em vez da mandioca que estava em sua posse. Coloquei as luvas e fui verificar o ferimento. Não era muito grande, disse ao Danilo “uns 3 pontos aqui são o suficiente, não?” E o Danilo concordou. “Pode deixar comigo” disse eu, e comecei a proceder, tal como havia aprendido na teoria.
Limpa o ferimento, põe o campo, aplica a anestesia, sutura, tira o campo, limpa novamente, faz o curativo...pronto, está feito o serviço. Tranquilo. Não para a primeira vez.
Até pôr o campo foi uma beleza, sem grandes dificuldades, mas então chegou a hora da anestesia. Eu nunca havia anestesiado ninguém, não deveria ser difícil, mas sabe como é. É uma pessoa que tá na sua frente, que tá com medo porque sabe que a coisa vai doer, e nem desconfia que você nunca fez aqui antes. Procurei demonstrar a maior frieza possível, e acho que na voz até consegui enganar.
Me contive em informar ao rapaz, como fez o Thiagão, da minha sala, que aquela seria a minha primeira sutura, mas antes de continuar, procurei alerta-lo: “Tente não ficar olhando, vai ser melhor pra você”. Mal sabia ele que a sugestão não era para que ele não se impressionasse com o procedimento, com todo o sangue que iria escorrer, ou com a pele dele sendo puxada pra lá e pra cá, e sim porque minhas mãos começaram a tremer mais do que as de alguém com mal de Parkinson e eu por alguns instantes não conseguia nem acertar a agulha na ferida do rapaz.
Depois da anestesia, achei que minhas mãos resolveriam obedecer melhor aos meus comandos, o que se mostrou rapidamente ser uma ilusão. Ao pegar a pinça, o fio e o porta-agulha para iniciar a sutura, eu continuava tremendo feito vara verde. “Não olha!” dizia eu, ao menor sinal de movimento da cabeça que o moço fazia.
Santa anestesia! Fico imaginando se o cara tivesse que sentir todas as vezes que eu passava a agulha por sua pele. Errei tantas vezes, por afobação, que se o corte fosse no rosto eu certamente seria processado por aquela sutura. Dei os três pontos que planejava e percebi que ficaram muito próximos. Ficaram bons, porém próximos. Resolvi então dar um quarto. E, acreditem, esse ficou feio. Catastrófico. Destruiu toda a sofrível simetria que eu havia conseguido até então e ficou do lado oposto da ferida do que tinha ficado os demais pontos.
Limpei o local, fiz rapidamente o curativo, e declarei “Rapaz, ficou uma obra de arte” (pensando internamente “só se for arte moderna”) e mandei-o pegar as receitas com o Dr. Edson.
Ele ficou bastante agradecido, e eu, por minha vez, também tive muita vontade de agradece-lo por ser a primeira pessoa na qual pude praticar uma sutura. Fiquei alguns instantes pensando se ele iria ficar me xingando ou voltar ao hospital me procurando quando abrisse o curativo e visse aquela bizarrice sem precedentes no seu dedo. Mas o tempo foi curto, pouco depois chegou uma senhorinha com as pernas queimadas pois deixou derrubar a bandeja quente com os salgadinhos da festa da neta, que seria dali a algumas horas.

Durante o dia chegaram algumas outras queimaduras, gente que pisou em prego, mordida de cachorro, acidente de moto, além de uma segunda sutura, que eu novamente pedi para fazer, afinal, precisava treinar.
“O que que o sr. fez aí na perna?” O homem estava todo ralado, mas com um corte na perna que precisava ser suturado. Respondeu que tinha subido no telhado para consertar sei lá o que, se desequilibrou e caiu. Limpa, põe campo, anestesia...
“Espera dr., se a gente bebeu um pouquinho, a anestesia pega?”
E assim, tremendo consideravelmente menos, fiz minha segunda sutura, num senhor que depois de ter tomado umas caipirinhas no almoço dominical com a família, achou que era um bom negócio subir no telhado para resolver o problema de goteiras. Foram quatro pontos. Ficaram bons, fui até elogiado pelo Dr. Edson.
Devo confessar que esse tipo trabalho é bem gratificante. O resultado é imediato, você vê ali, na hora, que pôde efetivamente ajudar alguém, e essa pessoa, por sua vez, reconhece seu trabalho, e sai dali geralmente muito agradecida. Não posso dizer que passei a cogitar ser um cirurgião, fiz apenas pequenos procedimentos, e este foi apenas meu primeiro plantão. Mas posso dizer que já vejo a coisa toda com outros olhos.

Mesmo assim, ainda concordo com outro amigo meu, que me contou que recentemente estava conversando com outros amigos que fazem medicina, todos eles decididamente futuros cirurgiões, que discutiam entre si mais ou menos desta forma:

-“Acho muito massa a cirurgia plástica, os pontos que eles dão e tal...”
-“Não cara, massa mesmo é a ortopedia, aquela pedreirice, força bruta, furadeira, parafuso...”
-“Gosto mais da neurocirurgia, operar com o paciente acordado é animal...”

E meu amigo, ainda que timidamente, foi quem concluiu a conversa:

-"Olha, sinceramente, massa mesmo é o ambulatório. Chegar e dizer: “Tudo bem, Dona Maria? como é que vai a pressão...”

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.