quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Para contar para os netos

(Dando sequência à série "Ensinamentos da melhor idade" - e que não me leiam Rubem Alves ou Woody Allen que, quase octagenários, afirmam que ainda não descobriram o que há de tão bom nesta fase da vida - posto aqui uma crônica anciã, a primeira que escrevi quando resolvi me enveredar por tal atividade, e que já está quase fazendo seu primeiro aniversário)


Chegamos em cima da hora: 15h32. Meu pai e eu adentramos e nos sentamos nos assentos por nós comprados e uma voz feminina no alto-falante já apresentava a atração, a expressão máxima da ala feminina da jovem guarda, Wanderléa.
A banda inicia a primeira canção e a voz de Wanderléa nos dá o ar da graça antes de sua presença física, e nisso já se ouvem animados aplausos e saudações. Eu procurando me ambientar faço o mesmo e aproveito também para reparar nos meus colegas de platéia. Noto que sou, por uma margem segura de três décadas, a pessoa mais jovem do lugar. E a conta é feita tendo por base meu pai, pois sem ele por ali poderiamos somar à conta pelo menos uma década sem causar prejuízo à veracidade da descrição.
Para quem não conhece o teatro do Sesc Pompéia, ajudo na vizualização geográfica: Existem duas platéias, a par e a ímpar, sendo que uma fica de frente à outra com o palco no meio, e paredes de tijolo nas laterais do palco fechando seu formato retangular. Assim sendo, o artista ora olha pra platéia par, dando as costas para a ímpar, ora faz o inverso.
Desta forma, caso Wanderléa tenha sido imparcial, o que de fato me pareceu, fiquei metade do tempo vendo suas costas, o que devo assumir era uma visão surpreendentemente agradável, haja vista ter a cantora já ultrapassado a conta dos sessenta. No entanto durante as investidas de Wanderléa em direção à plateia oposta, eu também aproveitava para dedicar minha atenção às pessoas que a compunha.
O que eu via não me deixava dúvidas de que ao menos três ou quatro asilos, ou casas de repouso resolveram mobilizar-se e levaram seus moradores para ver o show de, possivelmente, uma das maiores referência de suas juventudes. Seja ela referencia comportamental, de beleza ou ambas.
E como se divertiam as velhinhas! (haviam também velhinhos, porém em número bem diminuto) Cantavam quase todas juntas, não erravam uma frase sequer, pediam músicas, conversavam com Wanderléa no intervalo das canções, queriam ser notadas pela ídola, queriam ser como ela, mas era nítido que os muitos anos que separaram a jovem guarda do presente momento foram mais impiedosos para as fãs do que para a ídola.
Enquanto Wanderléa esbanjava beleza, suingue, sensualidade (sim, sensualidade) no ´´auge´´ de seus sessenta e poucos, vez ou outra podia-se ver uma senhorinha ou outra levantando de seu assento, pegando a bengala, ou andador, e dirigindo-se ao banheiro. Que contraste!
Mas não fiquei triste. Confesso não conhecer a fundo o trabalho da Wanderléa, mas durante o show pude notar ser ela uma senhora muito descente, dedicada a seu público, e imaginei que tenha sido uma boa referência quando de sua maior exposição na mídia. Muito melhor do que muitos dos novos ídolos que aí estão.
Boa cantora, banda muito eficiente, um ´´show nostalgia´´; Até eu conhecia pelo menos metade das canções. Uma tarde para mim muito agradável, que dirá para o resto do público. Mas não iria passar sem um clímax. A última música do show foi aquela sobre um casamento, em que chega uma moça e pede que o juiz pare, e coisa e tal. Havia junto às garrafinhas d´agua que Wanderléa bebia no intervalo das músicas, um buque de flores, que julgava eu ser apenas um objeto decorativo. Não era.
Como nas festas de casamento, Wanderléa, acredito que num ritual típico de seus shows, jogaria o buquê para as mulheres, e aquela que o apanhasse, segundo uma das lendas mais antigas de que se tem notícia, seria a próxima vítima do matrimônio. Nisso começa um ligeiro tumulto causado pela pequena multidão de senhoras que se dirigem para perto do palco, afim de tentar agarrar o buque. Um verdadeiro desfile de cabelos brancos, bengalas, oclinhos garrafais e um entusiasmo surpreendente. O problema é que havia duas platéias, a par e a ímpar, e Wanderléa não sabia o que fazer.
Antes que ela tivesse que tomar uma decisão deveras parcial para a ocasião (imaginem se ela escolhesse uma das platéias em detrimento da outra, que frustração causaria em metade das pobres velhinhas), apoiando a mão direita na coluna lombar, a passos vacilantes, uma senhora de chapéu de praia, toda de branco e óculos escuros sobe no palco e, naquele ritmo típico da jovem guarda, começa a dançar com a cantora.
Parecia filme, foi fantástico, ela remexia e apontava os indicadores para Wanderléa, numa dança que deve ter sido moda fim dos anos 60, arrancou efusivos aplausos e assovios da platéia, e certamente deixou muita gente com inveja. Pelo menos a mim deixou.
Claro que não por ter levado o buque da Wanderléa, e nem por ter dançado com ela, mas por sua coragem, sua presença de espírito, por sua mentalidade de "dane-se tudo, que pensem o que quiserem". Não sei se esse tipo de coisa vem com a idade, ou se vai com a idade, acho que depende de cada um. As vezes nas rodas de amigos ficamos conversando sobre curtir a vida, sobre ter histórias pra contar para os netos, como se só na juventude é que pudéssemos fazer loucuras, nos aventurar, botar tudo a perder, "passar carão" e depois de muitos e muitos anos, quando o neto vier nos visitar, possamos chegar para ele e dizer "meu neto, quando eu era jovem..."
Sai de lá com a vontade de que daqui uns 50 anos, estivesse eu na frente de meu neto, e depois de pedir-lhe que pegasse uma cervejinha no congelador, ele sentasse à minha frente e eu, como certamente fez aquela senhora depois de alguns dias, pudesse dizer "meu neto, você não sabe o que eu fiz essa semana...".

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Só pra saber

Como este humilde blog não possui um contador de visitas, me obrigo a pesquisar de alguma forma a frequência com que leem meus textos e quantificar os seguidores (inclusive os até então anônimos) que possuo, além de avaliar o tipo de leitura que mais lhes agrada. Não que isto vá exercer alguma influência na escolha dos temas sobre os quais pretendo discorrer, mas a curiosidade é grande o suficiente criar este post. Não vai mudar nada, é só pra saber mesmo.
Façam a gentileza de, por meio de comentários, dizer qual a crônica que mais gostaram. Para não ter de descer toda a página, refresco-lhes a memória. Até agora foram postadas:

- Vaga na ABL
- Presente de Natal
- Intermed
- Tanto o cinema quanto o estacionamento
- Conversas de Botas Batidas.

Agradeço as manifestações de apoio e elogios; é um grande prazer saber que uma diversão minha (escrever) proporciona-lhes momentos agradáveis. Adianto que independente da adesão ao blog, continuarei postando meus textos semanalmente. Afinal de contas...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Conversas de botas batidas

(Quebrando um pouco o ritmo, antes que venha a crônica do PraiaMed para acabar com a ânsia de meus novos amigos cearenses e de todos aqueles que seguem as minhas presepadas e de nossa trupe, posto hoje um texto de caráter mais reflexivo, que escrevi quando da minha última ida à terrinha)


Quarta-feira passada fui visitar minha avó. Ela mora numa casa de repouso no mesmo bairro de São Paulo onde fica a casa da minha família. Trata-se de um grande imóvel térreo, cheio de velhinhas simpáticas (alguns poucos velhinhos também) e funcionários muito pacientes e bem-intencionados.
A vó Teresa é minha única avó ainda viva. De alguns poucos anos para cá, quando, desde a morte de meu avô, passou a morar sozinha, ela foi ficando gradativamente mais debilitada e dependente, sofrendo quedas mil, esquecendo panelas no fogo e se adoentando com grande facilidade. A única solução possível foi a casa de repouso, pois todos os seus filhos trabalham e não havia a mínima possibilidade de dar toda a atenção e cuidados que uma senhorinha de mais de oitenta anos, nas condições em que se encontrava minha avó, necessitaria.
Pois bem, na tarde de quarta-feira fui visita-la. Quando lá cheguei, passei pela sala de estar/visitas e segui pelo corredor para uma área comum onde estavam muitas velhinhas desenhando e pintando. Ali não encontrei minha avó, no entanto de imediato ouvi sua voz vinda de um lugar próximo e descobri que ela estava no banheiro lavando as mãos; já havia finalizado sua atividade.
Ao sair do banheiro e me ver (de perto, pois ao meu primeiro sinal, quando estava a cerca de dois metros de distância, ela me respondeu com um ''pois não'') ficou felicíssima e fomos nos sentar na sala de visitas, para colocar o papo em dia.
A vó parecia muito bem. Das ultimas vezes que eu a vi, ela parecia bastante cansada, falava muitas abobrinhas, além de ser muito queixosa, demorava para responder, o que parecia demandar um esforço tremendo. Desta vez foi diferente, a vó estava bastante animada, perguntou da faculdade, falou sobre a família toda, que a Fernanda vai ser madrinha do Wagner, que o Cesinha vai casar, falou das amigas da casa, que a Dona Isabel e a Dona Teresinha haviam falecido a pouco, reclamou que suas coisinhas andavam sumindo lá na casa, entre outros eventos de seu cotidiano.
Estava eu estranhando o fato de até então a vó não ter inventado nenhuma história sem pé nem cabeça, que sempre acontecia quando recebia visitas. Uma hora aconteceu.
Depois de ter perguntado quanto tempo faltava para minha formatura, comentou que o prefeito de São Paulo disse numa entrevista que estava faltando emprego para médicos, mas que não havia nada a temer pois quem precisasse arrumaria um ''bico'' na televisão, inclusive me perguntou se eu não havia aparecido no programa ''Namoro na TV''.

Resolvi que seria melhor mudar de assunto e perguntei sobre Dona Neide, uma senhora de pouca idade e super lúcida que também mora lá, mas que nunca recebe visita de seus filhos e familiares. (O que em verdade não é fato isolado e nem raro em instituições como esta). A vó disse que ela estava bem e que deveria estar desenhando, e em menos de meio minuto a Dona Neide em pessoa apareceu e juntou-se a nós.
Vó Teresa – Ô Neide! Olha quem tá aqui! Meu neto, ele mora no interior (moro em Florianópolis). Vai ser médico.
Neide – Ah! Muito prazer (essa foi nossa quinta apresentação, no mínimo)...Nossa, Dona Teresa, eu tava lá pintando as escamas do meu peixe, mas eram muitas, ainda não consegui terminar.
Vó Teresa – Eu vi, a senhora pinta muito bem. Eu fiz lá umas garrancheiras e botei meu nome. Tá bom. Uma casa e uma árvore...parecia um barraco (risos)...Mas e seus filhos não vem hoje?
Neide – Não, hoje é dia de feira. Sabe, meus filhos são feirantes, cada dia num lugar, é difícil para eles me visitarem.
...(silêncio)...(nisso chega uma outra senhorinha e se senta numa poltrona em frente a nós).
Neide – Bom, vou lá terminar as escamas do peixe que eu fiz, são tantas.
Vó Teresa – Ah! Foi um peixe que você fez? Deve ter ficado muito bonito!
Nisso eu e a vó resolvemos dar atenção à senhora que havia a pouco sentado de frente a nós. Ao que parecia, ela também não havia recebido visitas e ficou contente com nossa intervenção. Seu nome era Maria, disse que nascera em Uberaba, no que minha avó comentou ''meu filho ia muito pra lá''. (meu tio morou um tempo em Uberlândia, cidade vizinha). Perguntei-lhe porquê resolveu vir pra São Paulo, e ela respondeu que veio para esquecer seu primeiro namorado.

A partir daí seguiu-se uma narrativa e tanto. Dona Maria contou-nos que quando tinha dezesseis anos namorava um moço pelo qual era apaixonada. Eram muito felizes até que um dia descobriu que o rapaz havia engravidado outra mocinha da cidade, e portanto, era obrigado a casar-se com ela. Contou-nos que foi ao casamento, e que depois da cerimônia foi a única pessoa que permaneceu na igreja, e que ali chorou muito, como nunca fez nem antes, nem depois em toda vida. Passados alguns meses seus patrões mudaram-se para São Paulo e ela pediu para vir junto, pois achava que conseguiria começar nova vida, sem pensar em seu antigo amor.
Engano seu, disse-nos que esquecer o primeiro amor é coisa das mais impossíveis. Chegou a casar-se, teve dois filhos. Tocou a vida, mas sempre com o moço na lembrança. Contou-nos então, que certo dia, há muitos anos, estava ela numa cabine de telefone público, no Bairro do Limão, quando sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Quando virou-se, de pronto reconheceu-o, era seu antigo e primeiro amor. Ele disse-lhe que não conseguia tirá-la do pensamento, que ficou sabendo de seu paradeiro e resolveu ir atrás, pois não poderiam ser felizes de outra forma senão um ao lado do outro.
Disse Dona Maria ter respondido que não era mais possível, que ela possuía uma família, marido, filhos, que a chance já havia passado, não dava mais. Ele apesar de muito triste, compreendeu e foi embora. Depois disso nunca mais se encontraram. Peguntei-lhe se ela havia voltado a Uberaba (no que vó Teresa comentou ''meu filho ia muito pra lá, dizem que a comida é boa''), e ela respondeu que só duas vezes, a passeio.

Não foi a primeira nem a segunda história com ares fantásticos que ouvi durantes as visitas que fiz a minha avó desde que lá fixou moradia. Histórias de infância, de amores impossíveis, de chegadas e partidas. Histórias maravilhosas, as vezes muitos tristes, mas que, verdadeiras ou não, nesta época da vida já não faz diferença. Grande parte dessas narrativas foram lapidadas durante longo tempo, a partir do momento em que todos aqueles projetos e sonhos de toda uma vida não tem mais como tomar lugar no mundo real, e ficam sendo remoídos na lembrança, até que o pessoa, impossibilitada de lidar eternamente com a tal frustração, passa a contar a ''versão ideal'' da história, até que de tanto repeti-la, passa realmente acreditar ser esta a verdadeira.
Mostrar interesse e dar crédito a essas fábulas é o mínimo que podemos fazer ao ouvi-las, proporcionando algum tipo de alento àqueles que, já sem muitas perspectivas futuras, não tem outro remédio senão tentar fazer com que os outros acreditarem que a passagem delas pela vida teve algo minimamente importante, e digno de ser lembrado.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Tanto o cinema quanto o estacionamento

("Meu caro Pedro, muito obrigado pela mensagem e pela crônica, que li com prazer. Vc leva jeito! Uma sugestão: procure uma oficina de crônicas. Há muitas, agora, e em geral funcionam bem. Desejo-lhe sucesso - nas crônicas e na medicina! Abrs. Moacyr". Tal manifestação de apoio do nosso grande Moacyr Scliar, a quem mandei há algum tempo "Vaga na ABL'', texto que inclusive já postei aqui, me motivou a antecipar esta crônica, que escrevi ontem, animado com a mensagem)


Certa vez conheci no Pida, bar em frente à faculdade onde ocorrem todos as festas e trotes de início de semestre, uma moça bem bacana. Morena, alta (não tão alta a ponto de eu ter de me preocupar com meus modestos 1,71m), quartanista de pedagogia, uma garota muito interessante. Papo vai, papo vem, trocamos telefone e depois decidimos nos encontrar. Minha sugestão não foi lá das mais originais: cinema no shopping, mas para um primeiro encontro sempre me parece uma boa escolha.
É bastante conveniente esta opção. Sugiro que nos encontremos na livraria local e chego alguns minutos antes, com pretensões de localizar previamente alguns livros interessantes, com cujos títulos ou autores tenho certa familiaridade (não preciso necessariamente ter lido os volumes) e fico nalgum ponto estratégico da loja de modo que, quando nos encontrarmos, passaremos obrigatoriamente por tais livros e eu discorrerei sobre eles, da forma mais natural já imaginada. É importante tentar impressionar no primeiro encontro, cada um tem seu modo, este é um dos meus.
Como é completamente impossível chegar depois das mulheres nos encontros, por mais atrasado que eu imagine estar, sempre consigo localizar os livros que quero nas livrarias. Mas tem de ser feito na medida certa. É só pra moça saber que você é antenado nas coisas, não um nerd abobalhado. Falar sobre Jorge Amado, Moacyr Scliar e até um Machado soa bem. Paulo Coelho e Augusto Cury já são meio controversos. Agora, se por uma fatalidade qualquer seu dedo apontar para alguma capa em que se leia “Ditado por Lucius”ou outra coisa que lembre a Zibia Gaspareto, sua noite estará seriamente comprometida.

Na noite em questão, depois do encontro inicial na livraria fomos comprar as entradas para o cinema. Quando nos aproximamos do guichê notamos uma grande faixa que informava: ''Quinta do beijo: os casais que se beijarem na frente do caixa pagarão meia entrada''. Comecei a prever ali que as coisas não iam dar muito certo. Eu teria de mudar o velho plano do papinho culto na hora dos trailers, da mão deslizando pela cabeça da poltrona até o abraço completo durante os minutos iniciais do filme, daquela cena inevitável de horizonte, planejada por todos os produtores de filme para que casais de primeiro encontros arrisquem o primeiro beijo, e todo o resto desse ritual secular. Mas onde que esse o dono do cinema estava com a cabeça em concordar com essa promoção?
Pois bem, improvisemos, então. A atmosfera claramente mudou, nem eu nem ela sabíamos o que esperar um do outro quando chegasse a hora de pegar os ingressos. Minha situação era muito pior, eu é quem deveria tomar a iniciativa, fosse qual fosse. Resolvi que quando chegasse a hora, eu lançaria um olhar fatal, daria uma piscadinha e iria me aproximando numa velocidade adequada, mas somente até os 90% da distância total, porque aprendi com Hitchie, o conselheiro amoroso, que os últimos 10% são com elas.
A medida que a fila foi avançando, fiquei ensaiando algumas piscadelas olhando para a parede, tentando conter o crescente nervosismo. Quando chegou a fatídica hora, a senhora do caixa nos abriu um sorriso e ficou esperando alguma reação, mas vendo que nada acontecia, levantou o queixo num gesto claro que significava ''vai ou não vai''. Tomei coragem, olhei pra a moça e lancei a piscadinha, infelizmente, devido à tensão, ou à repetição forçada do movimento durante o ensaio, a singeleza da coisa se perdeu e parecia que eu estava tendo um espasmo muscular. Antes mesmo de eu começar a aproximação, a moça se virou para a vendedora e pediu firmemente ''nós queremos duas meias-entradas para estudantes mesmo”.

Foi um golpe duro, pensei por alguns instantes que o encontro tinha ido por água abaixo, mas eu não podia desistir tão facilmente, afinal de contas já havia investido algum dinheiro na compra dos tickets. Por exigir esforço dobrado, numa situação deveras desfavorável, me lembro pouco dos pormenores da conversação e de toda a sequência que levou à consumação do fato. Consegui contornar tudo e as coisas deram certo. Só fomos atrapalhados pela escolha infeliz dos assentos, que faziam um barulho terrível que incomodou metade da plateia. Raras foram as oportunidades em que escutei tanta gente pigarreando e fazendo comentários em meio tom dirigidos a mim. Numa delas eu e uma outra garota (devíamos ter uns 16 anos) erramos o horário da sessão e tivemos que assistir ''O espanta tubarões'', uma animação infantil. É fácil imaginar o furor da criançada e a indignação de seus pais ao ver um jovem casal curtindo o escurinho do cinema de maneira que os primeiro o fariam no mínimo dali a uns oito anos e os outros já deixaram de fazer também há algum tempo.
Sou cinéfilo inveterado, e quando não vou ao cinema acompanhado também não gosto muito de ser atrapalhado pelas manifestações dos casaizinhos apaixonados. A concentração no filme fica especialmente prejudicada quando existe um casal a menos de cinco poltronas de distância e a gente tá naquela fase meio zero a zero. Mas o que se há de fazer? O cinema foi feito pra todos, inclusive hoje em dia fabricam as poltronas com braços móveis, para facilitar a vida e movimentação dos mais afoitos. Não podemos reclamar.
Se o filme foi bom ou ruim não posso afirmar com clareza, mas sai do cinema satisfeito por ter colocado as coisas nos conformes. Pegamos a última sessão do dia, portanto a única alternativa possível era pegar o carro no estacionamento e ir embora. O carro dela, que no caso me daria uma carona de volta para casa.
O estacionamento custou apenas quatro reais, mesmo valor da entrada do cinema. Eu, como manda os bons costumes, paguei tudo. Enquanto nos dirigíamos para o carro, feliz da vida por ter me saído relativamente bem depois de todos os reveses, resolvi puxar papo, mal desconfiando que ainda estava por vir a gafe-mór.

Eu: O preço das coisas aqui é mais barato do que lá em São Paulo
A moça: ------------------
Eu: Tanto do cinema quanto do estacionamento.

Sabe quando estamos meio distraídos e pensamos que a pessoa vai concordar com o que acabamos de falar, ou dar sequência à conversa, e por isso acaba nem ouvindo direito o que a pessoa disse? Pois então, foi isso que aconteceu comigo naquela hora. Eu juraria que os tracinhos da fala da moça poderiam ser substituídos por algo do tipo ''de que coisas você está falando''. Quando na verdade o que ela tinha dito era ''você quer que eu te devolva o dinheiro do cinema?''

Por uma sorte absurda ela percebeu rápido o que tinha acontecido e me salvou de acabar a noite sem carona e sem nada. Demos risada juntos da situação e voltamos para casa. Ela deve ter me achado um cara muito divertido, até porque na semana seguinte combinamos de assistir DVD no meu apartamento. Um programa menos sujeito a atribulações. Mesmo assim eu consegui me complicar.
Para combinar com o estilo do programa, resolvi comprar vinho e chocolate, e num primeiro momento parece que agradei. A única coisa com a qual não me preocupei foi em saber se eu tinha um abridor de vinhos em casa. Passei minutos constrangedores com a garrafa no meio das pernas, tentando empurrar a rolha garrafa abaixo usando uma caneta Bic.
Nessa altura do campeonato já devo ter acabado com todas chances de me dar bem com qualquer moça que esteja lendo este texto. Mas se até daquela vez as coisas deram certo, não deve haver muito mais com que se preocupar. Aprendi que ser divertido (com certa moderação) é um ponto positivo, talvez essencial. No mais, o que vale é a intenção.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Intermed

(Para matar a saudades dos que foram, tentar explicar aos que nunca terão essa oportunidade e, essencialmente, motivar aqueles que possuem a chance de ir, mas por motivos invariavelmente incompreensíveis, ainda não foram)



QUEM GOSTA DE PUTARIA DÁ UM GRITOOO!!! Fon fafon fafon fafon......
Deitado aqui no sofá de casa, num fim de tarde chuvoso, a roquidão da voz e o cansaço mortal que me impede de caminhar 3 metros até a cozinha para apanhar um copo d´água me asseguram do quão proveitoso foi esse tal de intermed sul, evento anual que proporciona aos estudantes de medicina desta região do país alguns dias de competições, festas e muita, muita diversão.
Desta vez o intermed aconteceu na saudosa Cascavel, no interior paranaense, terra de meu grande amigo, mestre Marchewicz (ou Chicão, para seus conterrâneos). Por experiências prévias, e pelo amor que tenho à vida (este amor possui duas interpretações válidas, a primeira, por reconhecer o potencial do evento, de proporcionar momentos ímpares e inesquecíveis, e a segunda porque ao mínimo indício de pretensões de não ir ao intermed, sou seriamente ameaçado de morte pelos demais moradores aqui de casa) evidentemente que estive lá, tendo a oportunidade de vivenciar muitas das presepadas que seguirão este prenúncio.
A cronologia dos acontecimentos pouco importa, pois por motivos de alcoolismo maior, terei poucas testemunhas para atestar sua veracidade. Mas o fato é que na ida, quando da parada dos nossos ônibus para a janta, eis que encontramos uma universidade adversária. Em número ridiculamente menor, apática e particular, a tal faculdadezinha foi humilhada por nossa delegação que, do alto dos bancos e mesas do restaurante, ensurdeceu a delegação rival, as familias, os funcionarios locais, e até uma freira (Irmã Eulália, eu a conheci depois) que estavam presentes, jantando tranquilamente antes da invasão e que tiveram o privilégio de ouvir nosso coro empolgado cantando: MÉDICO PRA CÁ, ENFERMEIRO PRA LÁ, MÉDICO PRA CÁ ENFERMEIRO PRA LÁ... Seguimos viagem após sermos expulsos do restaurante pelo batalhão de choque da cidade.

AHH, É O INTERMED E EU TO PELADO, AHH, É O INTERMED E EU TO PELADO!!....Esse é um dos estribilhos que todo mundo canta e quase ninguém leva a sério no Intermed. Quase.
Em verdade, quase ninguém hoje em dia se importa muito de ver outrém seminu, desde que escondam as partes íntimas. Subvertendo a lógica, alguns perspicazes companheiros de turma resolveram mostrar apenas o fundamental. Para uns, mostrar apenas o contorno através de uma fantasia de super-herói, de tamanho apropriado para crianças de 10 a 12 anos foi quase sempre o suficiente. Houve quem duvidasse do tamanho do contorno e, segundo boatos, acabaram se arrependendo.
Alias não quero estragar a surpresa de ninguém, mas antes que passem por situações desconfortáveis, do tipo daquelas em que a menininha comportada vai mostrar um álbum de fotografias com os momentos de confraternização da sua turma de faculdade para a família toda num churrasco e de repente aquela tia solteirona pigarreia e cutuca a menina com o cotovelo, perguntando o nome do menino do canto direito, e a menina descobre um detalhe ao lado da orelha do cara que está agaixado imediatamente à esquerda do tal sujeito indagado pela tia e vira a página do álbum de supetão. Deem uma checada geral nas fotografias em que aparecem os rapazes da 07.2. É apenas uma sugestão.

FEDERAL TÁ CHEIA, TÁ, TÁ, TÁ, TÁ, TÁ, CHEIA DO QUE.....
Agora, para quem não foi, um pouco do que vivi, do que vi, e do que não vi no Intermed, algumas das quais muito me orgulho, por mais estranho que pareça:
- Uma pessoa recebendo uma nota de um real de esmola, rasga a nota, come a nota e apaga um cigarro com a boca na sequência.
- Uma pessoa tentando incendiar o cabelo de um indivíduo da torcida adversária com um isqueiro durante um jogo de handball.
- Uma pessoa que foi levada para o hospital por bebedeira, e ao ser indagado pela quantidade de bebida ingerida, responde ´´mais de vinte baterias´´.
- Uma pessoa vomitando verde na porta do alojamento, sendo incentivado por pessoas alheias que cantavam ´´Não pára, não pára, não pára´´ ou ´´só mais um pouquinhooo, só mais um pouquinhooo´´
- Uma pessoa chorando pelo êxito de sua faculdade, emocionada por ver sua equipe campeã em sua ultima participação no intermed.
- Uma pessoa fazendo uma cesta de 3 pontos no final do basquete feminino.
- Um grupinho envolvendo gente de quase todas as fases do curso, dançando no meio do alojamento até a hora do café da manhã.
- Um grupinho sentado numa garagem, tomando cerveja, comendo churrasco e falando abobrinha....

Na realidade, cada um tem seu próprio Intermed, vivencia determinadas situações e guarda na memória momentos-chave. Aposto que se cada um que lá esteve se animasse a escrever sobre ele, teríamos a impressão de que foram vários eventos aleatórios, com uma pequena conexão qualquer entre si. Da minha parte, o que posso dizer é que volto deste intermed com uma sensação muito boa, orgulhosíssimo pelos amigos que tenho, pela atitude e presença de espírito que mostraram possuir, e por ter pessoas como eles para dividir esses tais momentos-chave.
....MARADOONAAAA, DIEGO ARMANDO MARADOONAAAAA...

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Quem sou eu

Médico da atenção básica de Sombrio - Santa Catarina. Escreve para o site da prefeitura, neste blog e eventualmente em outro veículos. Estuda filosofia. Toca violão e alguns outros instrumentos, nenhum verdadeiramente bem.